quinta-feira, 7 de novembro de 2019

CONCURSO: Mais Resenha! Nas Linhas da Leitura Crítico-Literária 2019

O concurso “Mais Resenha” está de volta com a sua 6ª edição! Vamos exaltar a leitura crítico-literária com a produção de RESENHAS? Inscrições até o dia 27/11, pelo e-mail: maisresenha@gmail.com  A premiação será realizada no dia do Festival do Empoderamento Estudantil! Consulte o regulamento na página http://maisresenha.blogspot.com.br

sábado, 19 de janeiro de 2019

Fotomemória



SEMANA DA LEITURA E DA LITERATURA
CAp UFPE, 08 a 11 de outubro de 2018

 Chuva de poemas
  

Cineliteratura “Ensaio sobre a cegueira”



Roda de diálogo “Leitura e leitores: encontro de gerações”

 


Vista-se de Haicai





Premiação Mais Resenha!



Vista-se de poesia: bruzinhas literárias


Feira de leitores


Farmácia Literária


Oficina Nas dobraduras das fábulas

Mesa Redonda Leitura e literatura: experiências pedagógicas na educação básica



Oficina de Microcontos




Contação de histórias


 
 


Mostra “O leitor-autor na construção dos sentidos”


sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Para ler... RESENHAS


Ensino Médio 2018

“GRANDE SERTÃO: VEREDAS” E A TRAPAÇA SALUTAR DA LINGUAGEM
ANNE BEATRIZ PIMENTEL DE ARRUDA
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

“Grande Sertão: Veredas”, livro do escritor mineiro João Guimarães Rosa, se encontra hoje entre os mais significativos da literatura brasileira. Foi publicado na década de 1950, trazendo consigo um romance entre dois jagunços. O autor, conhecido por sua aptidão linguística, era poliglota e trazia essa bagagem para o que escrevia. Disse uma vez que “para estas duas vidas [viver e escrever], um léxico só não é suficiente”¹. Foi médico, diplomata, contista, novelista, romancista e desde cedo reconhecido em todas as áreas que atuou. A grandiosidade de sua obra, que é de fato reconhecida, se dá pela genialidade de sua linguagem, assim como dos temas que perpassam o enredo robusto presente no livro.
O início do romance é marcado por um travessão que sinaliza o início da fala de Riobaldo, o jagunço contador de histórias que narra todo o livro. A obra, que conta com mais de 500 páginas, dispensa a divisão em capítulos e a linearidade de acontecimentos, já que “Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância”². O que a princípio pode parecer uma leitura exigente, ao longo da narrativa ganha um caráter extremamente libertador graças à forma de contar do autor. Fazendo referência a Roland Barthes, que dá à literatura o posto de “trapaça salutar da linguagem”³, João Guimarães Rosa explora a chance, representada pela literatura, de sair dessa “prisão” que pode ser a linguagem, desprendendo-se de palavras e de estruturas predeterminadas, utilizando essencialmente neologismos como combustível para sua criação.
A história se passa no sertão mineiro e, portanto, retrata aspectos e denúncias das vidas nesses “Gerais”² que “são sem tamanho”². Riobaldo é um jagunço que vive imerso em grandes questões religiosas e filosóficas. É um sujeito que não “peleja por exato”², indo na contramão do que parece ser o mundo conservador ao seu redor. Ele nutre e reprime seu amor por Diadorim, também jagunço e seu companheiro de guerra. É com Diadorim que vai “vivendo em par a par, por altos e baixos, amarguras e perigos, o roer daquilo ele não conseguia esconder, bem que se esforçava”². Em meio a jagunçada, enfrenta combates para conquistar aquilo que acredita junto com seu grupo. Para sair vitorioso, faz um pacto com o “demo”², aspecto do enredo que se torna um marco do livro, discutido por muitos a certeza de que esse pacto de fato se concretizou.
A narração de Riobaldo se destina a um suposto ouvinte que está de passagem pelo sertão mineiro, a quem chama de “senhor”, “moço” ou “doutor”. Em meio a esse relato, torna-se interessante reparar que alguns comentários servem de denúncias a alguns preconceitos, como o presente no campo linguístico. Em trechos como “O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito”² e “Invejo é a instrução que o senhor tem”² é deslindado que o jagunço coloca a fala desse “senhor” que é “de fora” em um lugar de maior valor que a sua. Guimarães Rosa traz em sua obra justamente a riqueza de uma língua viva, que vai além de uma variação linguística valorizada, ou de um conjunto de regras.
O amor repreendido por Diadorim, as vivências dos jagunços, os combates, as guerras, as personagens, a realidade do sertão e do “ser tão”, as questões que giram em torno dos pensamentos de Riobaldo, assim como outros elementos, compõem o rico labirinto que é “Grande Sertão: Veredas”. Existem inúmeras razões para a obra figurar dentre as mais significativas da literatura brasileira e mundial. É um livro “sem fim”, por assim dizer, como simboliza a lemniscata presente na obra. Essa infinidade se dá pelas inúmeras interpretações que a escrita de Rosa gera. Que o livro seja sempre essa “neblina”, para parafrasear o autor, que dá tanto o que interpretar sem perder, ainda assim, um caráter de indecifrável e indefinível para seus leitores.
REINALDO, Gabriela. Uma cantiga de se fechar os olhos: Mito e música em Guimarães Rosa. Annablume, 2005. ¹
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 21ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. ²
BARTHES, Roland. Aula. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978. ³



CÓLERA NOS TEMPOS DO AMOR
ANA LAURA BARBOZA OLIVEIRA DOS SANTOS
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

“O Amor nos Tempos do Cólera” é um romance publicado em 1985 pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez. A história se desenvolve em uma cidade colombiana no final do século XIX, que passa por um surto de cólera e constantes conflitos civis e ideológicos. Nesse contexto, o autor desenvolve um triângulo amoroso que perdura por mais de meio século entre os personagens principais: Fermina Daza, Florentino Ariza e Juvenal Urbino.
O livro é narrado pela perspectiva de um narrador onisciente, iniciando sua narrativa 51 anos após o casamento de Juvenal e Fermina, quando um quarto personagem, Jeremiah, se suicida em nome do não envelhecimento. A partir deste ponto, recordações da juventude são trazidas à tona, revelando a história de como eles se conheceram.
Ainda jovem, Florentino, telégrafo, se apaixona por Fermina, estudante. Vivendo a intensidade desse amor, trocam cartas durante anos até que o pedido de casamento é realizado, também por correspondência. Em contrapartida, a união dos dois é rejeitada pelo pai da menina, que parte, então, em uma viagem para “curar-se” de amar. Em seu regresso, percebe-se desapaixonada. Florentino, porém, persiste com a paixão, entristecendo-se com a negação da amada.
Pouco depois, frente à epidemia de cólera que assolava o país, Fermina apresenta sintomas da doença e o jovem médico Juvenal Urbino é convidado para checar sua saúde. Mais por insistência e benção do pai que por amor, os dois se envolvem e acabam por casar, iniciando uma relação de mais de cinquenta anos que é narrada no livro. Com a morte do médico, prestigiado na cidade, Fermina reencontra seu antigo amor e embarca na aventura d’o que poderia ter sido anos atrás.
Explicando dessa forma, o caráter doentio e obsessivo do romance passa despercebido. Porém, ao ler as longas e intensas páginas d’O Amor nos Tempos do Cólera, é impossível não reparar na intensidade com que experimentam o sentimento do amor. Essa intensidade não é necessariamente problemática, todavia torna-se por diversos motivos construídos entre os personagens.
Inicialmente, a diferença de idade é um fator preocupante, visto que Fermina ainda estudava quando conheceu o primeiro rapaz, este que já trabalhava. Além disso, o amor poderia simplesmente ser confundido com curiosidade, visto que eles sequer haviam conversado quando começam a trocar longas e demoradas cartas. Nestas, chegavam a anexar cabelo, pertences pessoais, de forma a demonstrar a completa entrega ao sentimento.
A fantasia do amor era tão grande e tão avassaladora que seus efeitos eram muitas vezes confundidos com os sintomas de cólera (náuseas, diarréias etc.). Talvez por isso o título do livro tenha sido traduzido desta forma, com a intenção de tornar cólera uma emoção. Existe também um caráter fantástico no romance, perceptível com elementos não completamente críveis, como a boneca que sangrava e a busca pelo tesouro nos mares.
Com o posterior encontro de Fermina e Juvenal, põe-se em contraste o amor romântico, extremamente intenso e urgente, de Florentino com a relação racional, estável e – talvez até – conveniente entre os recém-casados, que aprendem a desenvolver o amor ao passar muito tempo juntos. Uma importante reflexão que o livro proporciona é que o amor romântico nem sempre é a opção mais saudável para alguém.
Enquanto Fermina inicia sua vida de casada, Florentino experimenta a vida com diversas mulheres, sem prender-se a ninguém, desenvolvendo o caráter erótico do romance. Porém, a própria maneira com que perde a virgindade é problemática, pois não fica completamente claro se foi um estupro ou apenas parte da imaginação fértil do mesmo. Sua última companheira é a mais chocante por se tratar de uma menina de 13 anos que abre mão de tudo para viver o amor com ele. Este, por sua vez, diz enxergar nela a jovem Fermina por quem se apaixonou, mostrando a relação de poder incluída no amor idealizado por ele.
Ademais, a escrita de Gabriel García Márquez é bastante envolvente e, mesmo contando com termos não muito comuns na oralidade, compreensível. Conta com informações detalhadas e uma linha do tempo não cronológica, o que pode acabar tornando a linha de acontecimentos confusa. Ainda assim, o romance tem uma leitura rápida e fluida. É possível identificar também diversos elementos do movimento literário do romantismo na narrativa, tornando a experiência mais rica.
Em alguns pontos, chega a ser desconfortável assistir o desenvolvimento da masculinidade nociva de Florentino Ariza. É ainda mais desconfortável perceber o padrão de comportamento dele em diversas pessoas à sua volta, por mais que já tenham se passado quase dois séculos desde o lançamento do livro.
É importante não fazer uma avaliação completamente anacrônica do romance, visto que, no século XIX, a literatura tentava expressivamente quebrar com o racionalismo implantado no período do Iluminismo, contando, assim, com elementos exagerados e, nesse caso, desagradáveis.
Apesar de apresentar diversos pontos problemáticos nas relações construídas entre os personagens, tanto românticas quanto parentais, a leitura pode ser deveras aproveitada se realizada com um pensamento crítico de que não se trata de uma bela história de amor. Enxergando em Florentino um perfil a não se seguir, é possível colher bons frutos desta experiência literária.




A CEGUEIRA SISTÊMICA
LUÍSA SANTANA DE ANDRADE
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)


Publicado em 1995, Ensaio Sobre a Cegueira rapidamente se tornou uma das principais obras do escritor português José Saramago, que pode ser considerado, como o foi Lima Barreto, por exemplo, um dos autores que pensava além do seu tempo e época. Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1998, Saramago deixa como legado, ao falecer, em 2010,  não só seus prêmios literários, mas acima de tudo suas reflexões e críticas à natureza humana, à religião, entre outros tópicos.
A obra lusitana narra uma epidemia de cegueira que começa a espalhar-se em um centro urbano nunca nomeado na obra. A primeira declaração “Estou cego” surge já no primeiro parágrafo, partindo de um anônimo no trânsito que será doravante referido como O Primeiro Cego, e várias outras vão aparecendo no decorrer dos primeiros capítulos. A fim de controlar a contaminação, todos os doentes são enviados, pelas autoridades, a um manicômio abandonado onde são forçados a construir uma sociedade própria, uma sociedade de cegos.
Uma das características mais marcantes do romance, que perdura durante toda a obra, é o anonimato dos personagens, que são apenas caracterizados por aspectos físicos, como O Velho da Venda Preta, ou de valor social, como A Mulher do Médico. O que Saramago faz é brincar com a humanização dessas pessoas, que, sem nome, deixam de o ser, não conseguem ter empatia entre si em suas relações e não a alcançam do leitor. Além disso, a impessoalidade traz um sentimento de aleatoriedade, já que são aqueles homens e mulheres quaisquer, não estão cegos porque o mereceram, apenas estão, como estão centenas (talvez milhares) de outros personagens que permanecem sem menção senão como parte da manada.
É possível perceber uma crítica de Saramago ao sistema capitalista, que tomava conta do globo no fim do século XX, após a vitória da Guerra Fria e apoiado firmemente pela ideia do Sonho Americano. Um sistema, como apontou Karl Marx um século antes, de massificação do ser humano, de alienação. Seria a cegueira branca, então, a alienação capitalista das massas, que, no cenário global atual, podem até olhar, mas não conseguem ver, ou reparar, como coloca o autor. Ao descrever uma única personagem que não perdeu sua visão em meio à epidemia, Saramago quase que desenha um auto-retrato, sendo ele uma mente crítica em meio à sociedade que entrava no novo milênio.
A construção de um novo modelo de sociedade, na obra, remete às premissas do provérbio popular “o que os olhos não veem o coração não sente”, já que, encarando a cegueira própria e a alheia, os personagens parecem perder aquilo que o fazem humanos, sua moral e ética. Platão sugeriu, em sua obra A República, o mito do Anel de Giges, que narra a história de um pastor bom que, na possibilidade de ser invisível, começa a praticar crimes na busca pelo poder. Não só Platão como muitos filósofos modernos e contemporâneos buscaram qual seria a lei que rege as sociedades, o comportamento humano. Seria assim que, se não existisse um Estado moderador, punidor, o homem voltaria aos seus instintos animais onde rege a lei da sobrevivência. É nesse sentido que José Saramago faz uma reflexão sobre a natureza humana, e nossa condição de animais racionais, questionando os pilares que sustentam essa racionalidade que de tanto nos orgulhamos.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. 19a. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
PLATÃO. República. Rio de Janeiro: Editora Best Seller, 2002. Tradução de Enrico Corvisieri.




QUIXOTE E O VALOR DA LOUCURA1
JOÃO FRANCISCO CABRAL PEREZ
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

Em 1605, Miguel de Cervantes publica a primeira parte daquela que seria sua maior obra: Dom Quixote da Mancha. Considerado como um dos pilares da tradição literária ocidental, o romance espanhol figura dentre os clássicos mais relevantes da história da literatura. Entretanto, seu valor não se resume a seu prestígio histórico-literário; mais de 400 anos depois de sua publicação, Dom Quixote ainda suscita reflexões político-ideológicas essenciais para século XXI.
O livro narra os desvarios de Alonso Quijano, fidalgo manchego que, a partir da leitura de novelas de calavaria, “perde o juízo” e se alcunha de “Dom Quixote”; então, inspirado nos cavaleiros de seus livros, alia-se ao seu escudeiro Sancho Pança e inicia sua busca por aventuras, vagueando pela Mancha (região central da Espanha) no intento de desfazer injustiças, libertar inocentes e combater o mal no mundo. O ex-fidalgo (agora cavaleiro andante) toma para si o suposto dever herdado das ordens de cavalaria, e acredita lhe caber socorrer os desvalidos do mundo e impor, através de sua vontade e seu desejo, a ordem e a justiça na Terra: “(...) não quis aguardar mais tempo para pôr em prática seu pensamento, premendo-o a isso a falta que ele pensava que cometia contra o mundo com sua tardança, tais eram os agravos que pensava em desfazer, os tortos que endireitar,  as sem-razões que emendar (...)”2
Delineia-se, então, um dos paradigmas centrais da obra: a construção de Dom Quixote enquanto indivíduo de ação no mundo, enquanto sujeito. Considerado um marco da Modernidade, o romance cervantino inova ao construir uma personagem que representa o ímpeto moderno de ingerência humana no mundo, oposto a uma postura de passividade ou recolhimento – representada em outros personagens, como a sobrinha de Quixote. Ainda que supostamente inspirado num passado idealizado, a índole de Dom Quixote é a da construção de um novo mundo, de uma nova ordem utópica pautada em um ideal. Tal ideal une dois conceitos bastante caros à Modernidade: o de liberdade (Vargas Llosa chega a considerar Quixote como um precursor do liberalismo4) e o de justiça, que podem ser vistos, por exemplo, quando o cavaleiro andante tenta libertar presos das galés (ao vê-los, Quixote, transtornado, indaga a Sancho: “Como gente forçada? É possível que o rei force qualquer gente?”3) ou quando ensaia corrigir agravos cometidos a inocentes. Conhecidas são, entretanto, as consequências dessa postura. Nosso cavaleiro não chega sequer perto de atingir seu ideal, sofrendo imensamente ao longo de sua jornada: os presos, uma vez libertos, ferozmente o agridem; os inocentes desagravados, após Dom Quixote deixá-los, voltam a sofrer ofensas.
A loucura das atitudes de Quixote – celebremente representada no combate aos moinhos de vento – não deve ser tomada, contudo, enquanto mero delírio; loucura consciente (como indicado no final da Primeira Parte), ela é antes a mesma loucura que elogiou Fernando Pessoa em sua homenagem a Dom Sebastião5: enquanto loucura utópica, a índole intransigente de Dom Quixote pela justiça e pela liberdade é um valor que deve ser retomado no fazer-político do século XXI. Que pensemos Dom Quixote não como um simples desvairado, mas sim como uma figura prenhe de potencial idealístico a ser realizado: unida às experiências e aos conhecimentos contemporâneos, a loucura quixotesca pode servir como um impulso criador na luta por liberdade, justiça e igualdade em nosso século. Mais de 400 anos depois de sua publicação, a “desajuizada” construção de Cervantes ainda tem muito a nos ensinar.

1 CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote da Mancha. Tradução de Carlos Nougué e José Luis Sánchez. São Paulo: Abril. 2010
Ibidem, p. 60
Ibidem, p. 276
LLOSA, Mario Vargas. Uma Novela Para el Siglo XXI. In: CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de La Mancha. Madrid: Alfaguara, 2015
PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Abril, 2010 (“Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia / Cadáver adiado que procriar?”)




LEMBRANÇAS; PARA SE VIVER
MARIA ZAYNE NOGUEIRA DE AZEVEDO
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

"Para não esquecer" é um livro de crônicas e pensamentos de Clarice Lispector cuja primeira publicação se deu juntamente com a obra "A Legião Estrangeira", em 1978. Sua edição atual foi publicada em 1999, pela editora Rocco, sendo vendido enquanto um livro a parte, diferencialmente do seu formato original.
            A obra apresenta 123 textos que não podem nem devem ser enquadrados, sendo de leitura bastante fluida, como se tivessem vida própria e transcendessem os limites do papel. O principal tema abordado é a vida como um todo e suas várias percepções. Experiências são relatadas sempre com um ar reflexivo e metafórico, de forma a envolver o leitor.
            Um aspecto importante da escrita de Clarice que está presente no livro é o sentido que ela atribui às palavras. Não se lê Clarice com um dicionário, sua escrita promove e desperta a reflexão, a imaginação, a criatividade de alguém que enxerga no quadro "Paysage avec des oiseaux jaunes", de Paul Klee, uma mensagem de liberdade. Nesse contexto, "Para não esquecer" se assemelha muito com a poesia de Manoel de Barros, na qual a busca de uma explicação para os objetos e as situações do mundo vai além daquelas que lhes são usualmente atribuídas.
            O fato da grande maioria dos textos serem curtos, sendo resultados do fluxo de consciência que a autora ultiliza para escrever, faz com que o leitor se sinta envolvido pela leitura leve e ao mesmo tempo profunda do livro. Nele, a profundidade está imersa na simplicidade de cada palavra, e cabe a quem ler a coragem para adentrar os vários universos existentes no envoltório de cada ideia.
            Uma questão relevante tratada na obra diz respeito ao ato de escrever. Há uma metalinguagem muito forte em todo o livro, diversas crônicas permeiam e enfatizam o processo de escrita da autora, inclusive motivando e despertando em quem ler a vontade de escrever. Também contribui para isso a conversa com o leitor ser bastante íntima em cada texto, mesmo que não haja uma referência direta, como no seguinte trecho: " (...) minha experiência maior seria ser o outro dos outros: o outro dos outros era eu", página 23 - a aproximação de um mundo "real" acaba por criar um laço entre a parte leitora e o livro.
            A autora, ao longo de sua carreira, foi criticada por não abordar temas de cunho social, mas isso não é uma verdade absoluta e não diminui o valor do livro. "Mineirinho", última crônica do livro, é uma prova dessa verdade relativizada, é crítica ao armamento, à policia, à desigualdade, à humanidade. Seus traços não estão escancarados, como Conceição Evaristo faz em "Olhos d'água", todavia isso não signica que a questão social e humana não esteja ali.
            "Para não esquecer" é um livro de autoconhecimento, reflexão e memória que independe de faixa etária. O livro promove o desbloqueio criativo e proporciona ao leitor uma nova visão de mundo na qual se aprende a enxergar o tudo de cada nada. É uma verdadeira viagem de autoconhecimento através de lembranças e pensamentos que vão muito além de meros métodos estéticos.



O CORTIÇO: UM RETRATO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
MARIANA SILVA LUCENA
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

“O Cortiço” é um romance escrito por Aluísio Azevedo e sua primeira edição foi publicada em 1890. Aluísio nasceu em São Luís (MA) em 1857, escreveu romances, crônicas e contos, e era também jornalista e diplomata. “O Cortiço” é uma de suas principais obras e apresenta um caráter naturalista, uma ramificação do realismo.
            A história se desenvolve a partir da ambição de João Romão, um comerciante português, que possui uma venda, uma pedreira e um cortiço no Rio de Janeiro. Cada vez mais o cortiço cresce, predominantemente ocupado pelos trabalhadores da pedreira e suas famílias. Ao longo do livro, se acompanha a rotina e os problemas habituais dessa grande moradia.
            O livro é muito bem trabalhado na sua estrutura, visando reproduzir o que era o Brasil na época. É notável a importância dos papéis das personagens para abranger a diversidade cultural. Além de apresentar uma função de indicador dos problemas sociais.
            Sobre “O Cortiço” é possível destacar certos pensamentos pertinentes, como por exemplo o racismo já naturalizado: “Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua.”(1) sendo ela uma escrava negra, só se sentia segura ao lado de João Romão, um português.
            Também é notória a cultura machista, cultivada desde muito tempo: “Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava!”(2) atrelada a ideias de relacionamento amoroso, esse que apresenta vários desdobramentos. A separação, por exemplo, ainda como tabu, se mostra impraticável o que explica as altas ocorrências de traição no cortiço, além de que o divórcio coloca em risco a honra e posição social, como exemplo, Miranda e Dona Estela, que odeiam-se mas continuam casados. Pelas ocorrências no Cortiço, é possível perceber que não só os casamentos, mas o próprio ato sexual quase não tem afetividade. O matrimônio dá-se, muitas vezes, pelo dinheiro do dote. Já o sexo, por pura vontade carnal, bem retratado no livro por Henrique, um menino de 15 anos que teve relações com mulheres mais velhas.
            É importante ressaltar que a história não se baseia estritamente em um personagem, ou um objetivo. Isso pode comprometer o interesse do leitor no enredo, e deixar a experiência cansativa. Além de que as personagens não são tão exploradas, no âmbito histórico, não sabe-se muito sobre o passado de cada uma. Esse determinismo é expresso em João Romão, como o capitalista, Bertoleza como escrava; Miranda como burguês, Jerônimo como o trabalhador, entre outros.
            Mesmo não se identificando com o estilo de Aluísio Azevedo, a leitura de um clássico da literatura brasileira é válida, justamente por fazer parte da construção da identidade nacional. Sendo assim um livro recomendável a todos, principalmente para descobertas de costumes e ideias antigos. A história exibe várias cenas distintas com múltiplas personalidades, deixando nítido o traço realista da obra. Apresenta-se muitas personagens, de diferentes cores, idades, classes sociais e nacionalidades, um retrato do Brasil no século XIX. “Em nenhum outro romance do Brasil tinha aparecido semelhante coexistência de todos os nosso tipos raciais, justificada na medida em que assim eram os cortiços e assim era o nosso povo[…]”(3) – Antônio Cândido, crítico literário       
            A maneira que Aluísio estruturou o livro é igual a um cortiço em si, pois é cheio de momentos diferentes, com muitas pessoas envolvidas e sem foco especial para nenhuma delas. A protagonista de “O Cortiço” é o próprio local, por ser o que une as personagens e o que acolhe cada acontecimento, convívio, complicação e singularidade de toda e qualquer pessoa que ali habitar.

1, 2, Trechos de: AZEVEDO, Aluísio. “O Cortiço.
3 Trecho de: CÂNDIDO, Antônio. “De Cortiço a Cortiço”



AS MENINAS - UM LIVRO DE APEGO
BEATRIZ NASCIMENTO MONTEIRO CALDAS
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

O livro “As Meninas”, da escritora paulista Lygia Fagundes Telles foi escrito em 1973. Trata-se de um romance moderno de imprescindível leitura para o que a própria Lygia chama de “testemunho do tempo”, já que foi escrito durante a ditadura militar e narra acontecimentos da época enquanto passeia pela vida de três jovens paulistas. Lygia nasceu em 1923 e, segundo a também escritora Hilda Hilst, é uma das responsáveis por revolucionar a literatura brasileira.
As jovens protagonistas, Lia, Lorena e Ana Clara, vivem histórias e têm contextos muito diferentes. Lia, ou Lião, veio da Bahia e luta contra o governo enquanto vive seus amores e perigos, estudando as ciências sociais; Lorena, filha de uma mãe rica, viúva e problemática, é uma estudante de direito que ama seus chás e livros e se apaixona por um homem casado, sendo assim um retrato clássico da elite; Ana Clara, ou Ana Turva, enfrenta problemas com a dependência química, relacionamentos conturbados, a busca pela salvação financeira pelo casamento e o abandono da faculdade de psicologia. As vidas das três se entrelaçam e caminham juntas quando passam a morar no mesmo pensionato de freiras e começam a compartilhar suas felicidades e dificuldades umas com as outras.
O fluxo de pensamento e consciência ininterrupto que a autora propõe nos aproxima muito das meninas. Sabemos o que se passa em suas mentes, o que pensam umas das outras e o que fazem, ainda que - e aí está também a beleza - tenhamos acesso, em alguns momentos, apenas ao que elas alegam ter acontecido. Essa ininterrupção e incerteza da realidade, a priori, podem acabar confundindo o leitor, entretanto, existem expressões muito particulares e características que vão determinar a atmosfera de cada personagem e seu momento, nos ajudando a localizar-se dentro da leitura, que não possui muitas sinalizações e tem uma narração oscilante, como podemos ver no trecho a seguir:
"Voltou-se para o calendário que pendia da parede, flâmula com os meses estampados na seda. Este era o Ano Solar. "Nunca o sol esteve tão perto", pensou escancarando a janela. Bom tempo para fazer amor mas não revolução que calor muito forte em subdesenvolvido, amolece. Desfibra. "Lião entendia bem disso, quanto mais calor no Terceiro Mundo, mais terceiro ele fica"."
Com entrega, sentimos o que elas sentem. Lutamos pelo que elas lutam e amamos o que elas amam. É um dolorido romance de contestação e retrata bem o período ditatorial no Brasil enquanto é, ao mesmo tempo, atemporal. Ainda vejo feridas abertas que Lygia escancarou presentes na nossa sociedade atual – e “democrática”. Visceral e cru, é um livro de apego porque sentimos as meninas um pouco vivas (em mim, exuberantemente vivas) dentro de nós.



ÀS TRÊS DA MANHÃ, ÚLTIMO FÔLEGO
SOFIA GONÇALVES TORRES DE ANDRADE
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

Escrita em vinte dias de novembro e dezembro do ano de 1915, A metamorfose é a mais famosa novela de Franz KAfka. Marcada pelo expressionismo europeu da literatura moderna, apresenta um alto realismo e humor característico  do que se é "kafkaniano".
             A obra narra detalhadamente um período da vida de Gregor Samsa que, em uma manhã chuvosa, acorda em formato de inseto após sua metamorfose. Sua primeira reação a repentina mudança não é alarmante, é, contrário à de sua família, bastante calma.
            O inseto "monstruoso" assusta a mãe e o pai que irão, consequentemente, evitar o contato com o mesmo. Enquanto seus pais tentam negar sua existência, sua irmã procura ajudá-lo, reconhecendo superficialmente as dificuldade s vindas de sua alteração física. Eventualmente, o problema se torna maior e, com a renúncia da ajuda de sua irmã, seu falecimento ocorre às três da manhã em seu quarto escuro.
            Implicitamente para uns e explicitamente para outro, Kafka, sem sua obra, realiza uma detalhada descrição sobre a vida de um ser humano com doenças mentais e de outros tipos. A metamorfose em Gregor facilita o entendimento de pensamentos e sentimentos depressivos e ansiosos por cérebros neurotípicos, como também provoca um estudo semelhante a terapia em cérebros com traumas, imbalanceamentos químicos, entre outras diferenças. Por conta desta característica, a sua obra pode ter um impacto profundo em uma parte dos leitores, causando nestes uma relembrança de emoções guardadas subconscientemente. Por isso, destaca-se a grande inteligência emocional pertencente a Kafka.
            Atualmente, é possível perceber a estigmatização existente em relação a doenças mentais. Pacientes de psiquiatras são, normalmente, vistos como "doidos" ou "loucos" pela sociedade, assim colaborando para o aumento de casos de suicídio no mundo. Quando não entendida de forma correta, a doença torna-se sinônimo de preguiça, irresponsabilidade ou fraqueza.
            Nos primeiros momentos de percepção de sua metamorfose, Gregor não se encontra extremamente assustado com a alteração, da mesma forma que um cérebro doente não percebe sua mudança química drasticamente. Com o passar do tempo, Samsa acomoda-se em seus sentimentos de melancolia, pois, por conta do seu cansaço, isolamento e solidão, não há mais motivos, não há mais sentido.
            Ao nosso redor, diversas metamorfoses ocorrem, porém, ao invés de auxiliarmos a alterá-las, julgamos de longe suas monstruosidades. Eventualmente, nossas metamorfoses cotidianas tornam-se últimos fôlegos às três da manhã.



ERGUIDO O VÉU
ALICE ELENA SILVA AMORIM
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

“O Véu Erguido", escrito por Mary Anne Evans sob o pseudônimo de George Eliot, é uma novela percursora do racionalismo, de cunho caracteristicamente sobrenatural, escrita em 1859. A novela segue a história de Latimer, um jovem de personalidade sensível que, por desejo de seu pai e em conformidade com o cientificismo de sua época, se vê levado por uma trajetória educacional pouco consoante com sua disposição sonhadora.
Á sombra de seu irmão e buscando a aprovação paterna, vai para Suíça com o intuito de finalizar seus estudos em Genebra, onde é surpreendido por um adoecimento que desencadeia uma sucessão de acontecimentos, que culminam no surgimento da habilidade do jovem de ter visões e acesso aos pensamentos de outras pessoas, e o põe progressivamente mais longe do que se esperava que fosse seu futuro. A trama se desenvolve conforme nosso narrador personagem discorre sobre o impacto dessas habilidades sobrenaturais na sua vida, em especial no que diz respeito a então noiva de seu irmão, Bertha Grant.
Latimer foi um homem tolhido, de todas as maneiras que se pode imaginar. A perda da sua mãe e o crescimento em um ambiente que se recusava, sociologicamente, a valorizar os assuntos que ao jovem apelavam, o levaram a crescer alimentando uma melancolia onipresente. A distância emocional de seu pai e clara preterição que a ele dispensava também são fortes formadores da personalidade deprimida e resignada que vemos se agravar gradativamente conforme a sua vida progride.
Acredito que justamente por causa disso o aparecimento de seus dons foi mais uma maldição que uma benção. Em uma passagem do livro, Latimer menciona que sua "consciência expandida" se transformava em "dor e sofrimento" quando voltada para aqueles que dele eram mais próximos. Estar em contato com os pensamentos de outras pessoas, involuntariamente, já me parece um fardo grande o suficiente por si só, mais ainda quando adicionado à personalidade romântica e o quadro de negligência emocional do nosso personagem principal.
Sua relação com Bertha é derivada dessa conjuntura – ciúme que sentia do irmão e seu ressentimento da apatia que esse o dirigia, além do próprio fator do mistério que ela apresentava. A última fronteira, o ultimo véu. Era uma pessoa que necessitava da complexidade das relações humanas, que como qualquer um de nós vivia pelos momentos de surpresa, que no seu caso se tornaram esparsos e raros. Um romântico que se encontrava em um mar de mesmice, até por vezes mediocridade. A ilusão do amor de Bertha era uma válvula de escape pra o impensável conhecimento do outro, um peso que o Latimer se viu obrigado a tentar – e a certo nível falhar – carregar.
O livro é absolutamente espetacular, a escrita é muito cativante e demonstra poeticamente a introspecção do personagem. Metáforas e analogias ricas são comuns durante a narrativa, o que para mim engrandece a experiência de leitura, mas pode se provar um desafio por exigir uma maior atenção ao texto. O fato de ser uma novela, portanto curta, demonstra ainda mais a qualidade da história e da autora, que abordou em poucas páginas temas complexos de forma extraordinária. É uma leitura que eu definitivamente acredito valer a pena, bastante reflexiva e atual, melhor ainda, atemporal já que trata do quão delicada é a psique humana – os motivos de nossas ações são dotados de imensa complexidade. Complexidade essa atribuída ao sobrenatural nessa narrativa, que pode ser interpretado como a perceptividade do personagem principal – e sua cegueira deliberada.



CAPITÃES DE AREIA
ÁRISTON ARAGÃO ALVES
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

Jorge Amado foi um escritor Brasileiro nascido na cidade de Itabuna, Salvador, em 1912, integrou a Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde estabeleceu seus primeiros contatos com raízes comunistas, posteriormente as-trazendo para suas obras, onde se torna perceptível sua posição a respeito do movimento político, sendo a principal dessas obras, Capitães de Areia.
O livro fala das histórias, desafios e conflitos enfrentados diariamente por um grupo de crianças que habitam as ruas de Salvador, na Bahia, postos diante um cenário que os obriga a serem independentes e autossuficientes já em pouca idade, seja por meios legítimos ou não. O autor nos coloca frente a esse grupo que precisa enfrentar uma sociedade que em nada facilita a vida na rua, e como essas somente crianças se propõem a vencer tais obstáculos enquanto dialoga com assuntos importantes como: moral, juventude, crime e legitimidade.
Somos introduzidos à obra por uma série de cartas cujo objeto de discussão se apresenta como os capitães de areia e seu impacto que causa nesse universo, como os constantes roubos e outros conflitos que vêm praticando pela cidade, logo após nos apresentando a cada integrante do grupo por descrições rápidas, mas que conseguem lhe investir na história e envolver com os personagens.
Dando um contexto apropriado para cada personagem, o leitor se vê investido naquela história dinâmica e fluida que a qualquer momento pode tomar rumos inesperados para todos no grupo, expostos a uma realidade prematura que demanda algo que não se vê em crianças.
Jorge Amado consegue passar a sensação de antecipação e necessidade que as crianças possuem para poder lidar com um mundo desse, muitas vezes nos chocando como leitores, pela brutalidade aparente que o texto passa, deixando bem claro as dificuldades que tais enfrentam.
Entre as linhas do texto, você como leitor consegue perceber o sentimento de maturidade precoce apresentado às crianças, num mundo que não terá piedade deles, e assim estão dispostos a lutar pela sua proeminência na dura sociedade de Salvador.
Este Romance Neorrealista passa a sua história de forma simples e direta, mas que diz tanto a cada linha lida, que é muito improvável qualquer tipo de leitor não se sentir envolvido com a história e jornada dos capitães de areia, recomendaria essa leitura a todos os públicos que já tem maturidade suficiente para lê-lo, pois garante uma reflexão que vale a pena ser refletida em qualquer idade.



DO CORTIÇO AO CAOS, DO CAOS AO CORTIÇO
THAYNÁ DE SOUZA VASCONCELOS
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

   Rio de Janeiro, século XIX. Esse é o cenário utilizado por Aluísio Azevedo para retratar a obra " O Cortiço" (publicado em 1890, 8° edição - Martin Claret, 2012). O livro apresenta as peripécias do cortiço de São Romão, fruto da ambição de João Romão, que utilizava de todos os artifícios para alcançar seus objetivos, buscava sobretudo o acúmulo de riquezas, portanto o personagem é o próprio retrato do capitalista e do fetichismo cultural do burguês.
   A obra é um marco em defesa da tese afirmada pelo naturalismo, o determinismo. Pode-se exemplificar este ponto a partir da retratação do relacionamento entre Miranda e João Romão, durante toda história há a discrepância entre o sobrado do português e o cortiço, sendo Miranda a oposição à natureza degradante do dono da venda. Deste modo, divagações, como esta de João, são comuns para ratificar a tese: "a terrível convicção da sua impotência para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim".
   Neste momento vemos todo o preciosismo na linguagem utilizada por Aluísio, ao empregar uma ortografia de seu período cotidiano, poderia assemelhar-se à algo mais rebuscado, porém ele conduz a narrativa de forma cativante não havendo desconforto em relação à este aspecto, pois em exemplos como esse, o autor utiliza da linguagem em sintonia com o enredo para atrair o leitor,  a partir da descrição é possível vivenciar as circunstâncias apresentadas: "sopesando ao meio a vara na mão direita, girava-a com tal perícia e ligeireza em torno do corpo, que parecia embastilhado por uma teia impenetrável e sibilante".
   Ao analisar com um pouco mais de afinco observa-se a presença do determinismo, Azevedo não mostra receios ao usufruir de adjetivos, advérbios e tantos outros artifícios para que, com delicadeza, demostre o quanto acredita em um destino para cada personagem. Portanto sempre ao caracterizar Miranda, o descreve como o português, "vindo da terra", homem de honra, nascido para a nobreza e compara a João Romão, este que com sua natureza, era como um animal e independente de seus esforços ainda seria condenado a sua pretenção e falta de complacência.
   Por certo é neste momento que há um desconforto naqueles que não concordam com a tese defendida pelo livro e todo o aspecto do meio modificar as pessoas. Em especial no caso de Jerônimo, descrito como o português digno e trabalhador, que após instalar-se no Brasil e se envolver com uma mulata baiana, "Jerônimo abrasileirou-se", em suas próprias palavras, e o que significaria isto? O português havia se desleixado com o trabalho, seduzido pela bebida e pelos prazeres, caracterizando todo o estereótipo de "jeitinho brasileiro" difundido pelo mundo, o corrupto e vagabundo.
   O cortiço é apresentado como uma rede de histórias e pessoas, um amontoado de vida. Uma crítica à realidade da época, mostra-se comunidade rejeitada pela administração do país, em meio a um período abolicionista e de tantas outras mudanças. Então esses indivíduos procuravam refúgio em lugares de mesmos prestígio, como um cortiço, onde criou-se uma harmonia própria, entre as lavadeiras, a pedreira, a venda e outros desdobramentos, sendo possível visualizar uma unidade em defesa e auxílio de seus membros, seja em conflitos internos, disputas com a polícia ou em uma rivalidade com outros cortiços, é possível visualizar uma especial de nacionalidade do cortiço.
   Nem tudo é determinismo. A loucura lúcida de Bruxa? "Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo e tentou incendiar o cortiço". O que significaria incendiar o cortiço? Toda esta construção fundamentava o naturalismo, incendiar o cortiço demonstra acabar com a teia de propósitos, vidas e construções ali estabelecidas, é a loucura de Marciana e de Bruxa que afirmam uma revolta com as problemáticas acontecidas, estas que ainda ocorrem em nosso cotidiano, é ir contra sua estrutura e as reações em cadeia. Neste aspecto é perceptível o caráter crítico que marca o desenrolar do livro, entende-se que este livro não se passa apenas no século XIX, mas permanece em questionamentos atuais, que muitas vezes são vistos como tabus, seja a respeito da prostituição, homossexualidade e saúde mental, a obra apresenta para seus leitores a possibilidade de debate e reflexão. Porém neste momento novamente é reafirmado o determinismo, com a impotência desses movimentos revolucionários e continuidade do ciclo "natural" do cortiço.



O VÉU ERGUIDO E A CONDIÇÃO HUMANA
EMANUEL VICTOR BATISTA WANDERLEY
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

O Véu Erguido é uma novela escrita por George Eliot e publicada pela primeira vez no ano de 1859. George Eliot é o pseudônimo da escritora inglesa Mary Ann Evans (1819 – 1880). Trata-se de uma novela de terror psicológico e que dialoga com a tradição vitoriana de histórias do gênero, como Frankenstein, de Mary Shelley e Dracula, de Bram Stocker. Essas obras, por meio do fantástico, abordam questões filosóficas e sociais ainda pertinentes na atualidade. 
    O enredo gira em torno de Latimer, um jovem de grande sensibilidade e de natureza pouco prática, que é o filho mais novo de um banqueiro e destoa das expectativas de sua família, vivendo à sombra do irmão mais velho, Alfred. Aos 16 anos, é enviado a Genebra para estudar, quando adoece. Sua estadia na Suíça é interrompida, e sua vida sofre uma grande reviravolta quando, ainda debilitado, passa a ter visões do futuro. Além disso, de repente o jovem começa a “ouvir” de forma involuntária os pensamentos das pessoas a seu redor, o que o deixa ainda mais atormentado. Para aumentar o mistério, ele descobre que nem todos são possíveis de ler, e acaba tendo um inquietante presságio de seu destino que precisa evitar.
    A obra é narrada pelo protagonista e de forma introspectiva, quase sem diálogos. O eu-lírico apresenta uma sobriedade cínica e uma postura crítica afiada sobre as pessoas ao seu redor. Ao longo da história, são expostas a inveja e a mesquinhez tanto das pessoas que Latimer desvenda quanto as dele próprio. Isso, portanto, provoca dúvidas no leitor sobre a veracidade de algumas impressões do jovem, uma vez que todos os acontecimentos são contados sob a sua interpretação. Esse inteligente recurso literário utilizado por Eliot torna o livro mais complexo.
    Sua escrita é sofisticada e se utiliza de muitos recursos estéticos, com descrições ricas em figuras de linguagem, como a metáfora. A exemplo, destaca-se o belo trecho seguinte: “Ela era meu oásis de mistério no deserto do conhecimento”[1]. No entanto, para o leitor que prefere obras mais objetivas e factuais, O Véu Erguido pode deixar a desejar, já que possui diversos monólogos do eu-lírico e os fatos são brevemente descritos, pois o enfoque é dado às reações do protagonista.
    A clarividência de Latimer, o toque fantástico da obra, promove, paradoxalmente, uma reflexão realista sobre o “medo do futuro”[2] e sobre como a visão da realidade pode ser influenciada pelos anseios humanos: “Eu sentia um tipo de angústia imbuída de pena em relação ao pathos que me cabia: [...] alguém a quem a ideia do mal futuro roubava o presente de sua alegria [...]”[3].  O fato de Latimer poder ler o pensamento alheio não o ajuda em momento algum, sendo um fardo insuportável e que lhe provocou intenso isolamento. Isso porque o véu das aparências é erguido, expondo o egoísmo desenfreado e a malícia manipuladora presente nas pessoas.
    A novela é intrigante e permite reflexões sociais e existenciais muito pertinentes a partir dos pensamentos do eu-lírico. Sobre Eliot em O Véu Erguido, Alfredo Monte, em seu blog, conclui: “mesmo num texto curto, [...] delineia as grandes linhas de força que consolidaram a alta prosa narrativa [...] e que fizeram de certos personagens peças-chave do imaginário ocidental.”[4]. Pelos motivos descritos, essa breve narrativa torna-se recomendável a todo tipo de leitor que aprecie um livro provocador e que trate de forma atemporal sobre a condição humana e suas problemáticas, sendo, portanto, uma obra bem-feita e que merece ser experienciada.

Referências
[1] [3] ELIOT, George (1859). O Véu Erguido.
[2] [4] MONTE, Alfredo. Disponível em: <https://armonte.wordpress.com/2015/04/28/o-genio-de-george-eliot-e-a-arte-da-novela-o-veu-erguido/>. Acesso em: 23/09/18.



FLOR DE CHUMBO
MARCELA MARIA CABRAL RIBEIRO
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

Chimamanda Ngozi Adichie nasceu na Nigéria, no ano de 1977, numa família Igbo. Filha de um professor e uma administradora, viveu uma infância e adolescência relativamente privilegiadas, o que, entretanto, não a blindou às cenas banalizadas da pobreza, violência e miséria que assolava os habitantes de seu país e do continente africano como um todo. Hibisco Roxo, seu primeiro romance, foi lançado em 2003. Em 2005 recebeu o Prêmio Commonwealth Writers na categoria de Melhor Primeiro Livro.
A narrativa de Hibisco Roxo se ambienta numa Nigéria pós-independência que carrega o peso dos efeitos da colonização britânica nos panoramas político, econômico, social e religioso nas costas. Kambili, a personagem principal, é uma jovem negra que convive com seus pais, Eugene e Beatrice, e seu irmão, Jaja. Marcado pelo fanatismo religioso e pela influência da colonização na visão de Eugene do ser civilizado ou não, esse ambiente familiar proporciona uma zona de conforto nem um pouco confortável para as mentes de Kambili e Jaja.
As crianças se deparam com um conflito entre suas realidades e as de seus familiares por parte de pai, quando vão visitá-los, em Nsukka. Em sua própria casa, Kambili adotava um comportamento reservado e submetido às ordens de seu pai, mas ao experimentar uma nova forma de enxergar seu papel social na casa de sua tia Ifeoma, uma professora universitária esclarecida e muito crítica, algumas coisas começaram a mudar.
A mudança em Kambili não precisava ser política, porque seu pai tinha suas militâncias e sustentava um jornal progressista. Sua prisão estava nos paradigmas religiosos e europeus fortemente impostos pelo pai, que os recebeu dos colonos britânicos. O convívio da personagem principal com a tia, o avô, os primos e o padre Amadi, amigo da família, foi capaz de libertá-la de parte das pressões psicológicas que a atormentavam, mas não em completude.
A história é um misto de autobiografia com ficção, pois ao conhecermos um pouco da vida de Chimamanda, facilmente identificamos referências, como também distanciamentos drásticos. O fator mais impactante colocado em questão é a relação nutrida nos núcleos familiares, que no caso da de Eugene com seus filhos é extremamente tóxica, pautada em cobranças. Isso levou as crianças a se tornarem inseguras, e podemos enxergar muitos reflexos disso principalmente na autoestima de Kambili, por constantemente desejar ter dito algo antes de outra pessoa para agradar e sentir a aprovação do pai.
É perturbador o poder que Eugene exerce sobre sua família, principalmente na nossa posição impotente de leitores porque acompanhamos cada pressão psicológica e suas consequências, mas não há nada que possamos fazer para reverte-la. Fiquei extremamente desconfortável com o fato dele adotar uma conduta tão hierarquizada e autoritária dentro de casa, enquanto ao sair era benevolente com os pobres, ainda mais sendo considerado exemplo nas igrejas, a nível de importância próximo do próprio Deus nas homilias.
Outra particularidade é o fato de Kambili ser, além de protagonista, narradora da obra. À medida que isso nos faz questionar a fidelidade de cada situação descrita à realidade, também nos garante profundidade em sua perspectiva própria, e assim, uma maior intimidade com sua personalidade. Essa proximidade chega a ser assustadora, porque fica claro como Kambili se sente exacerbadamente culpada e como ela vive no medo. Seus próximos pensamentos e passos chegam a ser previsíveis pelo clima criado nas entrelinhas do texto.
As palavras são dispostas por Chimamanda com uma sensibilidade diferente, dignas de uma história de vida intensa e de uma menina no ápice das descobertas de sua identidade. Kambili, na luta interna pelo resgate das tradições valorizadas por uma parte de sua família, é frequentemente tomada pela ronda da voz de seu pai, associando seu avô (Papa Nnukwu) e tudo o que a conecta às suas raízes africanas a termos pejorativos em diversos momentos da história. A perseguição mental se torna um dos fatores de maior relevância, um empecilho, nos relacionamentos de Kambili com sua família e com tudo o que seu pai categorizou como “pagão”.
Metáforas são elaboradas com o recurso da natureza, mais precisamente das demasiado apreciadas flores dos jardins de casa e de tia Ifeoma. Cada momento da narrativa, dividida em três, representa um crescimento introspectivo de Jaja, Kambili e sua mãe, Beatrice. As flores que transportam são dores, e em suas essências, puro chumbo: pesadas, mas com o tempo e novas experiências, moldáveis.
As personagens em geral são bem desenvolvidas, mas senti muita falta de um melhor aproveitamento da figura de Jaja, irmão de Kambili. Enquanto dentro de Kambili o despertar para os efeitos da relação paterna abusiva foi mais sutil e, acredito eu, muito superficial, Jaja experienciou uma revolução interna intensa. Ele foi a personagem que mais projetou em suas atitudes a quebra com a dependência que Eugene representava. Inclusive, a própria Kambili notava as transformações de postura nele antes de em si mesma.
Além disso, vejo o paralelo entre os hibiscos vermelhos que enriqueciam a vista da casa de Kambili e Jaja com os hibiscos roxos trazidos por Jaja da casa de tia Ifeoma como uma das mais incríveis metáforas da leitura. Os hibiscos vermelhos eram a dependência, a insegurança, enquanto os roxos, além de experimentais traziam um gosto de liberdade e o toque de rebeldia próprio de Jaja, um canal de transmissão da criticidade e coragem à irmã e à mãe.
Identifiquei alguns elementos do realismo presentes na obra, como a investigação do comportamento humano e a presença de personagens não idealizados. Com bastante força na narrativa: os personagens não dicotômicos. Me apeguei a características específicas de personagens abusivos, como o Eugene e o padre Amadi, justamente por eles não exibirem apenas suas facetas negativas, embora estas ainda tenham um impacto muito mais significativo que suas qualidades. Essa nova forma de dar e enxergar simbologias enriquece o enredo com personagens mais complexos.
Apesar dos aspectos destacados que poderiam ter sido melhor trabalhados, Hibisco Roxo é uma obra de profundidade imensa, impossível de ser capturada com plenitude por esta resenha e que deve ser lida por trazer à tona um pouco de um continente tão negligenciado como o africano. Certamente, não deve ser lido na perspectiva de representação desse continente como uma unidade. Ademais, traz um aprofundamento psicológico único dos personagens, o que nos permite explorarmos uma das mais admiráveis competências da literatura, tão necessária nesse contexto de intolerância do texto: a empatia.



CAPÃO PECADO: ABANDONADO POR DEUS E BATIZADO PELO DIABO
JÚLIA CLARIANE NEVES SAMIR CRUZ
CRISTINA LÚCIA DE ALMEIDA (orientadora)

Férrez, num contexto de virada do milênio, publica o que segundo ele é “Um livro de mano para mano. É ácido e violento. É um grito”: Capão Pecado (Planeta, 2000). Buscando retratar uma realidade do Capão Redondo, zona periférica de SP muitas vezes citadas nas músicas dos Racionais MC’s, o autor cria reflexões sociais como enfoque nas relações econômicas sem cunho e linguagem acadêmica, tornando-o uma das obras mais prestigiadas na “literatura marginal”
O livro traz em todo o desenrolar dos fatos a história de muitos personagens, entretanto, sua pauta principal é na vida de Rael: jovem que cresceu entre amigos, morte e quadrinhos e que se destaca por não se envolver com o tráfico e o crime. O ápice da história se dá quando o protagonista troca seu emprego na padaria para trabalhar numa indústria a fim de ganhar mais e conseguir ajudar a mãe que trabalha como diarista. Entretanto, no novo trabalho se apaixona por Paula, recepcionista da empresa e namorada do seu melhor amigo de infância, Matcherros, o mesmo que traia a moça pelas costas. Apesar da prática comum de Matcherros, traição entre “irmãos” no Capão é considerada atestado de óbito e a possibilidade de Rael e Paula ficarem juntos coloca muita coisa em jogo.
Apesar da narrativa focada em problemas constantes da literatura infanto-juvenil (tais como amor, amizade e traição), o enredo de Capão Pecado traz uma reflexão de cunho social, não nos deixando levar pelos problemas de Rael como individuo, mas sim como de cidadão de um Estado democrático, no qual as questões pessoais tornam-se apenas caminhos para o autor retratar detalhadamente a guerra das zonas periféricas. Entretanto, é necessário ter cuidado porque o entendimento de Rael e Paula pode acabar caindo numa romantização forçada, levando a acreditar que o amor dos dois estaria acima das questões públicas, descaracterizando o livro e o distanciando do seu intuito.
O jogo de trazer várias realidades e visões sobre o mesmo contexto reforça toda a representatividade que a obra engloba, na qual os protagonistas da vida real são os próprios protagonistas da história e, consequentemente, as dimensões que o texto toma gera, ainda que teórica e sem muito efeito radical, uma visibilidade originada pelos próprios moradores; o próprio rapper Mano Brown destaca a importância desse espaço de fala trago por Férrez: "Enquanto a favela faz silêncio, a mídia manipula. ”. E é em todo esse contexto que Capão Pecado é uma das obras mais importantes da literatura marginal do século, afinal, é um livro de mano para mano. É ácido e violento. É um grito.